quinta-feira, 26 de junho de 2014

O delírio das assinaturas


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O que a noite me ensinou, sobre todas as coisas, pode ser traduzido na meditação desesperada dos silêncios. Estes instantes de exílio poético, em que as clausuras do amanhã não se sobrepõem às eternidades imaginadas.
Sempre precisei das madrugadas para dar início a uma carta, uma leitura profunda, uma mudez escancarada em quimeras. Manhãs nunca me foram testemunhas dos sonhares.
Por que será que as vísceras só se abrem nessas horas? Quais reinos são libertos, na escuridão dos antigos murmúrios? “Meu coração é um albergue aberto toda a noite”, sussurra Pessoa.
Contudo, uma vez proferidas, as palavras se despedem para habitar outras íris, outras mãos, outros pensamentos. E eu poucas vezes me percebi, anoitecendo minha alma na memória de narrativas alheias.
Nas últimas semanas, fui revisitar-me em duas ocasiões, em sincronia cósmica. Uma velha amiga me agradeceu pelo livro que a presenteei, em seu aniversário de vinte anos. Foram algumas poucas frases para que pudesse trazer à mente todos os desejos pueris que envolviam aquela data. E o coração pode celebrar, sem fantasias, a grandeza de ser repertório da existência dela, ainda que o hoje já não abrigasse nossos caminhos. Ontem fui imprescindível para aquela pessoa.
“Escrevemos cada vez mais para um mundo cada vez menos”, ensinou-me, tardiamente, Alberto da Cunha Melo. Essa melancolia arque(típica), quase inoportuna, quase clichê que apavora o destino de todos os escribas.
O mais importante, todavia, veio de um saudoso amigo da adolescência, por quem nutri muito carinho e admiração – na primeira metade de mim. Ele me confessou, com ternura juvenil, que eu havia escrito uma das cartas mais bonitas de toda a sua vida.
Meu coração, o albergue, sofreu um dilúvio imediato. Recordei todos os sentimentos que me avassalavam naquela época: dores infinitas, a solitude do não pertencimento, a recusa à obediência. Depois, fui encharcada por um orgulho sem nome, uma alegria além dos versos. Era a minha carne de menina, em papel e tinta, morando na alteridade.
Um pedaço meu guardado pelo tempo, expatriado da minha lembrança. De quem seriam aquelas declarações? Por quais estradas com ele estive, nesses anos todos? Quais seriam as inúteis revelações? De onde nasceram essas sagradas cicatrizes que eu havia cometido?
O fundamental daquele fenômeno, pois, não residia nos lugares comuns que eu provavelmente utilizei, tampouco o conteúdo de uma carta, ridícula. Os fatos eram apenas o preâmbulo de algo essencial: só me comunico através da escrita, verdadeiramente. Se amei, amo ou amarei alguém, nesta encarnação, necessito das palavras para elaborar as sensações. Só peço desculpas quando incorporada em literatura.
Não há memória que atinja, em igual beleza, uma superfície perfumada, com firma reconhecida. E isto constitui o maior fardo e o maior dom que alguém pode carregar. Todas as verdades só existem antigamente, quando a coragem legitimou o delírio de uma assinatura.